No livro Vigiar e Punir (1975), Foucault faz uma narrativa da tortura e esquartejamento de Damiens, um assassino parricida, em 1757. A agressividade, o modo da execução, revela o espírito daquela época: a tortura focada no corpo e de como esta tortura, com o passar dos séculos, transmutou-se em outra coisa, transferida para outro lugar. Passando do corpo para alma, deixa também de ser prerrogativa de quem detém um poder religioso, passa a ser prerrogativa do poder legal, do poder educacional, do poder psiquiátrico, do poder presente no trabalho etc. Em outras palavras, passa a ser tortura difundida, disseminada. Esta disseminação por diversos setores do cotidiano, tão introjetadas, que transformou-se em imperceptível, oculta uma sociedade contemporânea com muitos traços esquizofrênicos, trazendo em si, um certo grau de prazer por ser torturado, um desejo compulsivo de não ser livre, de delegar poderes aos opressores, hoje disfarçados por outros rostos, também carrascos e cumpridores de ordens. Diariamente encontramos com eles no trabalho, nas ruas, no trânsito, nas escolas e em diversos lugares. Cabe perguntarmos aqui, onde estaria escondido o grilhão aprisionante nos dias atuais, mas não é difícil perceber que em boa parte, tais correntes estejam embutidas nos mecanismos pentecostais, evangélicos e messiânicos das religiões. Cantarolando seus hinos, replicando suas palavras em praças e em lugares ‘profanados’ como sagrados, templos de disseminação de palavras de controle. A moral que emana da igreja tende a moldar, dominar a alma, e este mecanismo se sequência na educação escolar, no mundo do trabalho no mundo cultural e de informação, estendendo estes moldes afim de tornamos mais dócil ainda. Na escola, somos moldados e entregues ao mundo, para cumprirmos nossa jornada de trabalho, sem questionar e sermos dignificados por contribuirmos para o desenvolvimento humano, trabalhando horas a fio, por uma remuneração para lá de injusta. Nosso descanso, quando é permitido, fica à mercê da televisão, que nos vende uma falsa percepção da realidade, expostos a comerciais publicitários construídos minunciosamente para introjetar em nós, desejos por consumir e se apropriar de ideias que nos mantenham na roda do consumo alienante. Neste processo se moda o sujeito alienado de si e da realidade. Indivíduos voltados ao consumo, a quantificação das coisas, buscando sempre ser possuidor de algo mais e melhor, dando a sua vida ares de competição e se sentido melhor que os outros, quando possuidor de mais, viajar mais, consumir mais etc.
Somos prisioneiros de um sistema e ao mesmo tempo algozes de nós mesmos. Nos mutilamos físico e mentalmente, no caminho da metamorfose imposta pelo domínio do desejo do outro. Nos transformamos em um produto inacabado, num corpo rascunho, sedento por mudança, constantemente movido, imperceptivelmente, por modelos inatingíveis de perfeição e satisfação.
Angelo A Lopes